quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O internato


Lya Luft

A primeira lembrança que tenho de meu pai é o choro de minha mãe.
Sou ainda bem pequeno. Ela me pega no colo, me aperta contra si e soluça. O cheiro dela, mistura de jasmim – seu perfume doce e barato – e bolo de laranja, passa de seus cabelos para minhas narinas. O conforto deste abraço contrasta com o tormento dela, que eu ainda não entendo muito bem. E com o meu medo.
Muitas vezes eu a veria chorar por causa da brutalidade dele. Nunca entendi por que ficava naquela casa, com aquele homem, por que permanecia submissa e humilhada, o que de tal maneira a prendia nele e naquela situação. Ele a ridicularizava na nossa frente ou na frente de conhecidos e vizinhos, e nós, eu e minhas duas irmãs mais velhas, fervíamos de raiva. Quando crescemos, quisemos convencer nossa mãe a largar aquele homem brutal, e tentar vida longe. A gente lhe daria força, a gente ia com ela. Ela não aceitou. Um sentimento pavoroso e fortíssimo a prendia ali, e foi ficando.
Meu pai era muito religioso. Nunca faltou à missa. Curvava-se para tirar do caminho um inseto a fim de não pisar em cima. Mas a minhas irmãs e a mim, surrava de cinto, e em minha mãe dava bofetadas que quase a derrubavam. Era mesquinho, contava cada moeda que ela gastasse a mais, só coisas simples e grosseiras entravam em nossa casa. E versículo da Bíblia, claro, ele sabia aquele troço quase de cor. Não bebia, não roubava, acho que nunca cometeu faltas no seu trabalho, era honesto, era muito organizado. Mas em casa nos tratava como se vivêssemos num covil, aquilo não era um lar: era uma caverna de animais aterrorizados por uma fera.
A mim detestava abertamente, sobretudo porque nas vezes em que assisti a alguma cena violenta entre eles, sempre meu pai gritando, insultando ou levantando a mão para um tapa, tentei interferir. Chamei-o de animal, de monstro, abracei minha mãe para que ele não a atingisse, mas ele parecia se divertir com isso. Tentei me colocar entre os dois, mesmo quando era pequeno e franzino. Quando eu tinha onze anos, depois de uma grande briga, avancei contra ele, e, mal chegando à metade da sua altura, fiz o que podia: mordi a carne de seu peito e não larguei nem enquanto ele me dava tapas e socos. Senti o gosto do seu sangue ruim. Por fim minha mãe conseguiu me arrancar dali, gritando e chorando. Agora a gente não podia mais conviver, ele e eu. Foi decidido que eu iria para um internato de padres, longe dali, aprender a ser um homem decente e um filho respeitoso.
Não houve discussão. Não houve argumento de minha mãe que o convencesse, nem lágrima, nem pedidos de minhas irmãs, mas pai, ele é tão pequeno, tem pouca saúde, não faça uma coisa dessas! Eu nem implorei nem chorei na frente dele, embora me sentisse morrer só de pensar em ser tão cedo separado das pessoas que me amavam, minha mãe e minhas irmãs. Não teria adiantado mesmo. Ele dizia:
– Tenho um inimigo dentro de casa, e é esse rapaz. Não quero ver a cara dele por aqui. Não quero que ele cresça perto de mim. Não tem prato de comida para ele na minha mesa.
Minha mãe não conseguiu fazer meu pai mudar de idéia: preferiu ficar ao lado dele. E talvez essa tenha sido sempre minha dor maior.
Interrompo minhas lembranças porque ouço movimentos da criatura que se inquieta no quartinho. Enxugo a sua baba com um pano velho, amarro melhor seus pulsos porque se conseguir soltar as mãos ele arranha os próprios braços e a cara até tirar sangue. Tento não aspirar o seu fedor.
Depois volto para lembrar e sentir alegria pelo dia de hoje. Estive naquele internato vários anos, e cresci muito mais forte do que seria em casa. Aprendi a me defender, a ser pior do que os piores, para sobreviver – pois eu ainda era franzino, um pouco gago e muito medroso. Mas transformei o medo em uma raiva que me impele em quase tudo que faço. Em geral disfarçada debaixo de uma grossa camada de autocontrole e disciplina. Quando ela se rompe, é melhor ninguém estar por perto. Por isso vivo sozinho, sem filhos, sem mulher, sem namorada e sem amigos mais chegados. Assim me sinto melhor.
Tudo isso aprendi no internato. O que chorei naqueles anos, sobretudo nos primeiros temos, daria para inundar uma casa inteira e afogar meu pai. O abandono que senti, a rejeição, a crueldade de meu pai e a fraqueza de minha mãe, me corroeram como o pior dos venenos. Eu queria, mais que tudo no mundo, voltar para casa. Mas uma casa sem pai. Ter de novo o cheiro bom de minha mãe, os cuidados de minhas irmãs, algum tipo de aconchego. O internato era imenso, o dormitório frio, com chão de ladrilhos, dezenas de camas enfileiradas, tudo ali era impessoal e me parecia ameaçador. Vigilância, suspeita e castigo eram a norma. Lá aprendi a ser limpo, metódico e até obsessivo. Boa parte de meu tempo livre passo arrumando a casa, uma casinha de só quatro peças, mas que mantenho imaculada. Lá no meu ódio e na minha mágoa, eu era forte. Sem mãe nem irmãs, fiquei ainda mais determinado. O preço foi a dor de muitos anos, uma dor de abismo. Assim é a minha vida, e é uma boa vida, segura e organizada.
Quando saí do internato, não voltei para casa. Consegui um emprego e aluguei um quartinho bem longe deles. Trabalhei muito, cumpri meus deveres, consegui aumentos, comprei esta casinha. Eu progredi. Quando queriam me ver, minha mãe e minhas irmãs me visitavam. Admiravam-se de ver tudo tão arrumado e limpo. Sou muito controlado, mantenho a fera dos meus sentimentos reais debaixo do calcanhar da minha força de vontade. Não é fácil conseguir isso o tempo todo. Às vezes ela me escapa. Não me casei porque ninguém se sentia tranqüila ao meu lado: eu era desconfiado demais, atrás de cada beijo esperava a mordida. E talvez aquelas mulheres tivessem medo do que, no fundo de mim, esperava a hora de sair.
Às vezes sou convidado para almoços com as famílias de minhas irmãs, que se casaram e tiveram filhos. Gosto de rever minhas irmãs, de observar meus sobrinhos crescendo sem violência nem atormentação, eles têm uma família. Me sinto feliz? Essa é a pergunta que nunca me faço. Eu sobrevivi. Tenho um lugar decente para morar. Tudo aqui é meu. Não tenho verdadeiros amigos, mas meus colegas me tratam bem, fui promovido no trabalho, porque sou
assíduo e confiável. Sei que me acham esquisito em algumas coisas, mas não sou um sujeito mau.
Só revi meu pai quando minha mãe morreu, tão magra, tão velha, além dos seus verdadeiros anos, que chorei como chorava no internato. Chorei por ela e por mim. Mas dele nem cheguei perto, nem ele levantou a cara para me ver. Sabendo que ele estava na mesma sala, eu tremia com um pouco do velho medo, e muito do renovado ódio. Depois que minha mãe foi enterrada, nunca mais eu soube dele. Quando me encontrava com minhas irmãs, elas sabiam que o assunto era proibido: meu pai não existia para mim. Elas praticamente também o ignoravam. Suportávamos uma carga enorme de mágoa e raiva.
Até que uma delas me telefonou e disse que o velho estava mal. Alguém as tinha avisado de que vivia na antiga casa feito bicho, vizinhos piedosos às vezes acudiam, ele estava louco de verdade, comia até da lata de lixo. Elas, cheias de filhos e de preocupações, não podiam fazer nada. Sabiam que eu não tinha mais nenhum contato com ele, sabiam do nosso ódio recíproco. Mas já que eu era sozinho, e estava bem de vida, não podia tentar alguma solução?
Primeiro recusei com veemência. Depois tive pena delas, afinal haviam agüentado as maldades dele mais tempo do que eu, e eram boas mulheres. Entendi que tinha chegado a minha hora. Há uma semana a criatura está na minha casa, presa no quartinho dos fundos. Consegui finalmente um lugar para ela num asilo de velhos. Fui até lá verificar, e é dos piores: encardido e malcheiroso, atendentes com ar feroz e uniformes manchado, os velhos tapados com cobertores fininhos e remendados, comida parecendo ração de cachorro. É lá que a criatura vai ficar. Faço isso com enorme e maligna alegria. Não vou secar sua saliva, limpar seus excrementos, dar sua comida na boca pelo resto da minha vida. Não quero seu cheiro, sua respiração, sua presença por perto.
Quero que ele sofra todos os sofrimentos que suportei no internato, onde fui colocado numa idade tão tenra, onde só pude ver minha mãe e minhas irmãs duas vezes ao ano, no Natal e na Páscoa. Onde só não fui abusado porque também sabia ser violento, meu apelido era Louquinho, até os maiores sentiam medo de mim. Espero que ele agora sofra para compensar o que fez com minha mãe, que viveu uma vida miserável, agüentando além de tudo sabe Deus que humilhações na intimidade do quarto.
Olho o relógio. Está chegando a hora. A partir das dez da manhã posso entregar a mercadoria. Então vou até a criatura, desamarro seus pulsos, passo um pano na sua cara, penteio as falripas de cabelo, já o vesti esta manhã cedo e botei fralda limpa. Se se sujar de novo, agora é com os atendentes do asilo. Com uma alegria que cresce a cada instante e quase me deixa eufórico, ajudo a criatura a se levantar da cadeira: ela consegue caminhar desajeitadamente, se eu lhe der o braço. Faço isso com nojo e horror. Então rosno em seu ouvido, com a ferocidade de um cachorro batido que finalmente pode morder:
– Vamos, velho nojento. Hora de ir para o internato.

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